top of page

Quando a saúde ocupa as ruas: o trabalho essencial do Consultório na Rua em Salvador

  • Foto do escritor:  Maria Vitória
    Maria Vitória
  • 28 de mai.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 2 de jun.

Entre estigmas, racismo e abandono social, profissionais do SUS constroem, todos os dias, uma rede de cuidado e resistência para quem vive às margens da sociedade.


Foto: Arquivo Consultório na Rua 
Foto: Arquivo Consultório na Rua 

Por Maria Vitória Nunes*

 


audiodescrção03

“Nosso trabalho é político. Não é caridade, é luta por justiça social. Cuidar é um direito, não um favor.” Ana Carla, médica do Consultório na Rua do Pelourinho.

 

As ruas carregam histórias que quase nunca ganham espaço nos noticiários ou nas estatísticas oficiais. São histórias de invisibilidade, dor, resistência e, muitas vezes, de violações constantes de direitos. Quem vive na rua carrega não só a ausência de moradia, mas também o peso do abandono social, do racismo, da criminalização da pobreza e da negligência do Estado.


É nesse cenário que atua o Consultório na Rua, uma política pública do Ministério da Saúde, criada em 2011, com a missão de levar atendimento de saúde diretamente às pessoas em situação de rua — uma população que, embora tenha seus direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e pelos princípios do SUS, enfrenta todos os dias portas fechadas, preconceitos e uma lógica institucional que insiste em lhes negar assistência. Além dos atendimentos, o Consultório na Rua coordena o cuidado, facilita o acesso a outros serviços.


Jaqueline Matos | Foto: Flávio C. de Almeida
Jaqueline Matos | Foto: Flávio C. de Almeida

“O nosso trabalho é garantir acesso. Se eles não conseguem chegar até os serviços, nós levamos o serviço até eles”, explica Jaqueline Matos, coordenadora do Consultório na Rua do Pelourinho. 

A atuação das equipes é pautada na clínica ampliada, na redução de danos e, sobretudo, na construção de vínculos. Isso significa olhar para cada pessoa além da condição de estar na rua, entendendo sua história, suas necessidades e seu tempo.

Em Salvador, o programa conta com cinco equipes, localizadas no Pelourinho, Gamboa, Brotas, Itapagipe e Itapuã. Cada uma vinculada a uma unidade de saúde, mas com atuação nas ruas, praças, avenidas, becos e onde quer que as pessoas estejam.


Por que um consultório na rua?


“O Consultório na Rua existe porque essa população não consegue acessar os serviços convencionais. Não era pra existir pra sempre. Era pra qualquer unidade acolher. Mas a realidade é outra: racismo, estigmas, burocracia e um sistema que expulsa essas pessoas dos seus direitos.” — expressa Ana Carla.
Foto: Arquivo Consultório na Rua 
Foto: Arquivo Consultório na Rua 

A lógica do cuidado parte do território. A atuação é moldada pelas necessidades locais e pelo ritmo das ruas. Enquanto no bairro de Itapuã o fluxo é maior durante o dia, no Pelourinho o pico ocorre à noite, quando as pessoas se reúnem em busca de alimentação, abrigo improvisado ou simplesmente segurança.


A cartilha do Ministério da Saúde sobre o trabalho com a população em situação de rua deixa claro: a rua não é apenas um espaço físico, mas um território complexo, dinâmico e que exige do cuidado em saúde uma abordagem singular, sensível e intersetorial.




Quem são as pessoas em situação de rua?


O senso comum insiste em repetir que estão na rua por “escolha” ou “por uso de drogas”. A realidade desmonta esse mito. Segundo dados do Censo Pop Rua do Projeto Axé (2023), em Salvador, o perfil majoritário são homens, de 30 a 45 anos, mas também há mulheres, crianças, adolescentes e idosos.


As principais causas que levam alguém à situação de rua são o desemprego, a fome e o rompimento dos vínculos familiares. O uso de substâncias surge muitas vezes como uma estratégia de sobrevivência: para enfrentar o frio, para se manter acordado e se proteger de violências, ou para amenizar a fome e o sofrimento psíquico.


“A gente precisa parar de repetir que a droga leva pra rua. Na verdade, é a rua que leva muita gente ao uso. É pra aguentar a realidade de viver na rua.” — reforça Jaqueline.

O que faz uma equipe de Consultório na Rua?


Tudo. Absolutamente tudo que for possível dentro dos princípios da clínica ampliada e da redução de danos. As equipes são compostas, em média, por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, psicólogos, assistentes sociais, educadores físicos, redutores de danos, motoristas e administrativos. Quando disponíveis, também contam com terapeutas ocupacionais, embora esse seja um profissional escasso.


Os atendimentos incluem:

  • Consultas médicas e de enfermagem;

  • Pré-natal na rua, quando necessário;

  • Curativos, administração de medicamentos, inclusive injetáveis;

  • Tratamento diretamente observado (TDO) para tuberculose;

  • Acompanhamento de pessoas vivendo com HIV/AIDS, inclusive até alcançar carga viral indetectável;

  • Encaminhamentos para especialidades, cirurgias e rede socioassistencial;

  • Ações educativas, práticas de lazer e rodas de cuidado;

  • Distribuição de insumos de redução de danos (água, preservativos, kits de higiene).


“A gente (equipes que acompanham a população) já fez cirurgia de catarata, acompanhou tratamento de câncer, de transtorno mental, de infecções, de feridas crônicas. Tudo isso com a pessoa na rua, ou caminhando com ela até os serviços.”Ana Carla

Foto: Arquivo Consultório na Rua 
Foto: Arquivo Consultório na Rua 

Desafios diários: não é só a falta de moradia


Atuar nas ruas é enfrentar todos os dias um leque de desafios que vão além das questões clínicas. O racismo estrutural, a criminalização da pobreza, o estigma, as barreiras institucionais, a violência urbana e até mesmo as restrições de facções criminosas moldam o território e impactam diretamente o trabalho.


“Tem paciente que não pode pisar em determinado bairro porque tem uma facção. E se ele não pode ir, como ele vai no posto, no CAPS, no hospital? A gente precisa pensar isso. A cidade não é livre pra todo mundo.” — denuncia uma das profissionais.

Além disso, faltam documentos, faltam vagas em serviços de acolhimento, faltam políticas de geração de renda e, muitas vezes, falta empatia dos próprios serviços de saúde.


A Cartilha para o Trabalho com a População em Situação de Rua, produzida pelo Ministério da Saúde é enfática: “Atender na rua é compreender que a saúde está diretamente ligada ao acesso à moradia, à alimentação, à segurança, à educação e à renda. Sem isso, não existe saúde.”


“Não é favor. É direito!”


Para além das técnicas, há um elemento que atravessa todo o trabalho: o vínculo. Ele não se constrói em uma ficha cadastral ou em um número do SUS. Ele se constrói no olho no olho, na escuta, no respeito ao tempo de cada pessoa.

“O nosso trabalho é político. A gente não tá aqui pra fazer caridade. A gente tá aqui pra garantir direito. Direito à saúde, à dignidade, à vida.” — afirma Ana Carla

Cuidar é resistir


O Consultório na Rua é, na prática, uma trincheira de resistência em defesa da vida. É a expressão concreta dos princípios do SUS — universalidade, integralidade e equidade — aplicados na linha de frente, onde o Estado muitas vezes vira as costas.


“Se fosse só um problema de saúde, era mais fácil. Mas é fome, é frio, é violência, é falta de casa, de trabalho, de cuidado. E a gente faz o que dá, na medida do possível, sabendo que não dá pra fazer tudo, mas também que não dá pra não fazer nada.” — relata a médica do Consultório de Rua.

Dados que encaram a realidade:

  • Tuberculose é a principal doença acompanhada pelas equipes.

  • O Brasil está entre os 20 países com maior carga de tuberculose no mundo, doença diretamente associada à desigualdade social.

  • Após a pandemia, houve aumento expressivo da população em situação de rua em Salvador e no Brasil inteiro.

  • A maioria das pessoas atendidas são pretas, pobres e vítimas do racismo estrutural e institucionalizado.


Foto: Arquivo Consultório na Rua 
Foto: Arquivo Consultório na Rua 

Retrato das ruas em Salvador


A população em situação de rua na capital baiana carrega não só o peso da falta de moradia, mas também o reflexo de uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, racismo estrutural e exclusão. Para entender esse cenário, o Censo Pop Rua Salvador 2023, realizado pela Prefeitura Municipal de Salvador em parceria com o Projeto Axé, mapeou as principais demandas:


  • Tuberculose, HIV/AIDS, transtornos mentais e feridas infeccionadas estão entre os principais problemas de saúde.

  • 52% das pessoas em situação de rua relatam sofrer de algum transtorno mental não tratado.

  • 72% já sofreram violência física ou psicológica nas ruas.

  • As principais fontes de violência são: forças de segurança pública, seguranças privados e cidadãos comuns.

  • 35% não possuem nenhum documento civil.


Cuidado em rede


  • As equipes do Consultório na Rua atuam em articulação direta com:

  • CAPS (Centro de Atenção Psicossocial);

  • Centro Pop;

  • Defensoria Pública — Núcleo Pop Rua;

  • Corra para o Abraço e Projeto Axé;

  • Unidades de acolhimento e assistência social.


Enquanto a cidade dorme, o cuidado acorda nas ruas

 

Enquanto o ideal — que qualquer pessoa seja acolhida em qualquer unidade — não chega, o Consultório na Rua segue, dia após dia, noite após noite, ocupando as ruas com cuidado, com escuta, com resistência e, acima de tudo, com humanidade.


*Maria Vitória Nunes atua como redatora e revisora, além de colaborar na gestão das mídias sociais do projeto. Esta reportagem contou com a produção de Flávio C. de Almeida, que também atua como produtor, redator, revisor e responsável técnico pelo site.

Comentários


© 2025 por Revista Eletrônica Caderneta.

bottom of page