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Além dos muros da escola: quando a comunidade vira espaço de aprendizagem

  • Foto do escritor:  Maria Vitória
    Maria Vitória
  • 28 de mai.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 2 de jun.

Foto: Flávio C. de Almeida
Foto: Flávio C. de Almeida

Por Maria Vitória Nunes*

 


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No Bairro da Paz, em Salvador, aprender nem sempre começa dentro da escola. Em espaços sustentados pelo afeto, pela solidariedade e pela força comunitária, projetos sociais se tornam a única esperança de crianças que, apesar de estarem matriculadas, seguem sem conseguir aprender a ler ou escrever.


Rayane, educadora do Projeto Crescer, vê diariamente como a desigualdade se reflete na vida das crianças.


“Eles chegam aqui não só com dificuldades escolares, mas com problemas que vêm de casa, da rua, da vida. Aqui, a gente tenta ser esse espaço seguro, onde eles se sentem ouvidos, acolhidos e apoiados.”

O relato de Rayane se cruza com o de Irmã Joyce, da Congregação das Irmãs Mínimas de Nossa Senhora das Dores e diretora do projeto. Desde 2001, ela e outras irmãs mantêm, junto com educadores sociais, um espaço que oferece muito mais do que reforço escolar. São atividades de música, artesanato, dança e rodas de conversa — uma verdadeira rede de cuidado e desenvolvimento integral.

Irmã Joyce | Foto: Flávio C. de Almeida
Irmã Joyce | Foto: Flávio C. de Almeida

“Na escola, eles passam de ano, mas não aprendem. Aqui, dizemos que eles são águias. Precisam voar, não podem se conformar em viver olhando só para baixo, para a condição que a vida impôs”, afirma Irmã Joyce.

O que é o Projeto Crescer?


Criado para ser um espaço de apoio às crianças do Bairro da Paz, o Projeto Crescer nasceu da percepção urgente de que muitos alunos, mesmo matriculados na rede pública, não estavam aprendendo o básico. A proposta vai além do reforço escolar: é um espaço de formação cidadã, fortalecimento de vínculos e desenvolvimento de habilidades.


O projeto atende atualmente cerca de 100 crianças de 6 a 12 anos, oferecendo atividades de segunda a sexta-feira, como reforço pedagógico, aulas de música (violão, canto, percussão), oficinas de artesanato e dança. O espaço funciona, muitas vezes, como uma extensão da própria casa — um local onde se aprende, mas também onde se constrói autoestima, autonomia e esperança. Grande parte das ações é mantida através de doações e apoio da comunidade.


“Nosso foco é que a criança cresça não só em conhecimento, mas em valores, em sonhos e em possibilidades”, completa Rayane.

 

Alfabetização além da sala de aula: o que dizem os especialistas


A dificuldade das crianças em aprender não está relacionada apenas à escola em si, mas reflete um contexto social, econômico e estrutural muito mais amplo.


A professora Ilza Carla Oliveira Santos, especialista em Alfabetização e Letramento, reforça que os desafios da educação pública vão muito além da sala de aula.


“As escolas públicas enfrentam uma série de desafios que dificultam a plena implementação de um ensino de qualidade, incluindo recursos limitados, infraestrutura precária, desigualdade social, formação de professores, gestão e organização, conflitos, violência e necessidades especiais. Esses fatores contribuem para que as escolas públicas não consigam abraçar todas as questões necessárias para garantir um ensino de qualidade a todos os alunos.”

Ela também alerta que é nas séries mais avançadas que o quadro se torna alarmante.


“Há um número considerável de alunos que não se encontram alfabetizados em séries mais avançadas. Isso sim é preocupante! Essa situação é um reflexo de diversos fatores que vão além da competência profissional dos professores”, pontua Ilza.

Essa análise encontra respaldo nos estudos de Ana Teberosky e Emília Ferreiro, que, em sua obra clássica “Psicogênese da Língua Escrita”, defendem que “a criança não aprende a ler e escrever simplesmente por associação entre sons e letras, mas sim porque constrói, progressivamente, uma compreensão sobre o funcionamento da escrita e seu valor social.”. Quando esse processo não acontece de forma adequada, as crianças avançam nas séries sem dominar plenamente as práticas de leitura e escrita, perpetuando desigualdades que vão muito além dos muros da escola.


De acordo com os resultados do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) 2023, 39,9% dos alunos do 5° ano do ensino fundamental apresentaram níveis de proficiência em leitura considerados abaixo do adequado, enquanto no 9° ano, esse percentual foi de 59%. Esses dados evidenciam os desafios enfrentados pelos educadores na sala de aula, que, mesmo diante de adversidades, desempenham um papel crucial na promoção da aprendizagem e no combate às desigualdades educacionais.


A educadora também destaca que o processo de aprendizagem é integral, e que o desenvolvimento socioemocional das crianças precisa ser considerado tanto quanto o cognitivo.


“O educando precisa ser visto em suas múltiplas dimensões: emocional, social, cognitiva e física. O aprendizado precisa ser mais holístico e eficaz.”


Educar com afeto e pertencimento


Os projetos comunitários assumem esse papel de auxílio na educação — não só de ensinar, mas de cuidar, proteger e fortalecer.


“Se a criança não aprende com papel e lápis, ela aprende cantando, se expressando, se sentindo parte de algo”, reforça Irmã Joyce.

O olhar atento sobre cada criança faz com que elas se sintam vistas, algo que muitas vezes não acontece na escola formal.


Rayane | Foto: Flávio C. de Almeida
Rayane | Foto: Flávio C. de Almeida

Rayane lembra, emocionada, de um aluno que odiava estudar e que hoje, aos 18 anos, está terminando o ensino médio e sonha com a faculdade.


“A gente insiste, planta uma semente. Uma hora ela brota. E quando brota, a gente vê que tudo valeu a pena.”

Um futuro que floresce onde há cuidado

 

Para essas crianças, aprender é muito mais do que um dever — é um caminho para sonhar, se reconhecer e construir possibilidades que, muitas vezes, pareciam distantes. No coração do Bairro da Paz, entre violões, cadernos, conversas e abraços, o Projeto Crescer segue provando, todos os dias, que quando a comunidade se une, a educação acontece de verdade. Porque ensinar não é só passar conteúdo, é gerar pertencimento, cuidado e esperança.


Esse movimento de transformação também se reflete dentro das salas de aula, onde educadores, mesmo diante de desafios estruturais, seguem comprometidos em fazer a diferença na vida dos seus alunos. São profissionais que, assim como os projetos comunitários, entendem que educar é um ato de resistência, de amor e de construção de futuros.


E, enquanto houver quem acredite na força da educação — seja no projeto, na escola ou na comunidade —, haverá também crianças aprendendo a voar, como águias, descobrindo que podem ir muito além do que a realidade tenta lhes impor.


*Maria Vitória Nunes atua como redatora e revisora, além de colaborar na gestão das mídias sociais do projeto. Esta reportagem contou com a produção de Flávio C. de Almeida, que também atua como produtor, redator, revisor e responsável técnico pelo site.

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