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Da rua ao livro: a revolução silenciosa da Betty Coelho

  • Foto do escritor: Matheus Rocha
    Matheus Rocha
  • 24 de nov.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 1 de dez.

Foto: Blog Boca do Rio Magazine
Foto: Blog Boca do Rio Magazine

Por Matheus Rocha

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Em 1915, em uma crônica para o Correio da Noite Lima Barreto lamentou que a Biblioteca Nacional, embora monumental, era pouco dada ao povo: um lugar onde “uma leitura ligeira ou instrutiva” parecia fora de lugar. Um século depois, na Boca do Rio, o poeta Douglas Almeida parece escrever, sem saber, uma resposta prática a essa velha distância entre livro e gente.


A ideia de criar uma biblioteca ganhou forma em 1994, quando Douglas Almeida recebeu uma doação improvável: cerca de 400 livros do poeta Paulo Garcez de Sena. O lote reunia autores baianos — entre eles Maria da Glória Paranhos e Guido Guerra — e escritores cearenses, todos com dedicatórias que registravam a circulação de uma geração inteira. Somado ao acervo que ele próprio acumulava, o gesto deu ao poeta a sensação de que já havia ali algo maior que uma pilha de volumes usados.

“Como leitor, você vai acumulando livros, e eu já tinha uma biblioteca considerável”, diz. “Então decidi criar uma e a chamei de Biblioteca Prometeu Itinerante.”

O nome remete ao Titã que leva o fogo do Olimpo aos mortais — metáfora que Douglas traduz como “a partilha do conhecimento”. Itinerante, no caso, não é licença poética: sem sede, o acervo passou a circular por onde houvesse gente disposta a folhear alguma coisa  em praças, escolas, faculdades, praias, até margens de rio.


No centro da cidade, a Prometeu Itinerante funcionava a céu aberto, em pontos como a Praça da Piedade e o Campo Grande. O acervo dormia provisoriamente na Escola de Belas Artes da UFBA. Passavam por ali escritores, jornalistas, sindicalistas e um grupo amplo de jovens que circulava entre bairros distintos.

“Era gente muito irreverente, transgressora, curiosa. Na época o movimento punk era forte, e isso marcava o jeito de ler e de ocupar a rua”, diz.

Com o tempo, a biblioteca ampliou o raio de ação: chegou a aldeia Hippie, em Arembepe, a faculdades, praias e bairros periféricos como Alto de Coutos. Em 1999, a iniciativa recebeu um pequeno apoio da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), ligada a igrejas evangélicas progressistas. Foram quatro meses de aluguel garantido, o suficiente para Douglas encontrar, na Boca do Rio, um local onde pudesse fincar a primeira sede.


A mudança alterou o público e o propósito. Saiu o circuito boêmio-intelectual do centro; entrou a rotina da vizinhança, marcada pela ausência quase total de equipamentos culturais. “A demanda mudou completamente”, afirma. No bairro, quem aparecia eram crianças e adolescentes, muitos estudantes de escolas sem biblioteca. A Prometeu, antes itinerante por necessidade, se tornou fixa em uma boa oportunidade.


Voz e conhecimento:  Contação de Histórias na Biblioteca Betty Coelho 


A contação de histórias na Betty Coelho nasce antes mesmo da própria Biblioteca. Antes de haver estantes, sala, ou nome, havia um trio improvisando cultura em movimento. “Aí nós, eu, Sidney Rocha — músico de reggae — e Jeane Sánchez — atriz e contadora de histórias — coordenamos a Biblioteca Prometeu no bairro da Boca do Rio”, lembra Douglas Almeida. Ao perceberem que a demanda do bairro era majoritariamente infantil, decidiram ampliar esse acervo e estudar um pouco sobre pedagogia, lendo Piaget, por exemplo. Jeane Sánchez já inclinada à oralidade, aprofundou-se ainda mais no ofício: “A Jeane começou cursos de contação de histórias com a escritora Maria Betty Coelho Silva.”


O reconhecimento comunitário viria logo adiante. A Petrobras realizou uma pesquisa no bairro para identificar iniciativas culturais relevantes; alguns jovens indicaram a Prometeu, “elogiavam bastante”. O trio elaborou um projeto, aprovado, e assim nasceu, em 12 de março de 2005, a Biblioteca Infantojuvenil Betty Coelho. Desde o início, o espaço combinava consulta e empréstimo de livros com práticas de oralidade: “A biblioteca parte do serviço usual de consulta e empréstimo de livros, mas também trabalha a oralidade, ou seja, a oralização, que é importante numa sociedade letrada, utilizando a voz.”


A educadora e contadora de histórias Jeane Sánchez começou a se aproximar da Biblioteca Betty Coelho antes mesmo de o espaço existir oficialmente. Ela já trabalhava com Douglas Almeida e Sidney na antiga Biblioteca Prometeu Itinerante, que circulava por diferentes bairros.

“A gente percebeu que, na Boca do Rio, quase todo mundo que se aproximava eram crianças”, diz. “Os adultos eram minoria. Então ficou claro que precisávamos criar uma biblioteca infantojuvenil.”

A relação de Jeane com a narração de histórias é anterior à vida profissional. “Minha mãe, meus avós… todos contavam histórias. Alguns cantavam, outros narravam causos de assombração”, lembra. A formação acadêmica — teatro, mestrado em artes cênicas e doutorado em difusão do conhecimento pela UFBA — apenas refinou o que já vinha de casa: a percepção da contação como prática educativa e ferramenta de vínculo. “A fala, a escuta, o olhar… tudo é cuidado.”


Ela explica que a escolha de cada história parte de um planejamento: público, espaço, clima, origem das crianças. Depois, durante a roda, o corpo dá os sinais. “O corpo fala. Eu observo olhares, movimentações, até quando a criança parece dispersa, mas está conectada.” Um princípio é não estabelecer hierarquia física. “Aprendi com a Betty Coelho: a gente fica no mesmo nível dos ouvintes.”


Para Jeane, a contação de histórias segue sendo um antídoto para a mediação pela tela.

“No presencial, existe corpo, voz, ambiente. Há elementos que a tela não dá. A criança escolhe olhar ou não olhar, mas está ali, e o encontro acontece.”

Ela considera a biblioteca um espaço essencial num bairro — e, na prática, uma espécie de laboratório de autonomia. “Quando o estudante chega, vê os livros, ouve os poemas, acontece um brilho nos olhos. O desejo de voltar aparece.” Não à toa, várias crianças cresceram ali e retornaram como monitoras. “É quando elas dizem: isso é bom, e eu quero dividir com outras pessoas.”


Jeane pesquisa no doutorado justamente esse fenômeno: o ciclo que faz com que leitores se tornem mediadores. “A biblioteca tem uma mediação muito própria. Desde a disposição das estantes, a forma de receber quem chega, até a geografia dos espaços por onde a gente circula.” Ela define o ambiente como uma “casa de vó” — acolhedora, atravessada por ancestralidade e pertencimento.


Num tempo em que a maior parte dos estudantes está com o celular na mão, Jeane não vê o aparelho como inimigo, mas como contexto. “O problema não é o celular, é a falta de oportunidades. É o jeito de chegar. Quando chega do jeito certo, a criança abre espaço para outros aprendizados.”


Histórias para se contar 


A relação de Mauro com a Biblioteca Infantojuvenil Betty Coelho começou cedo. Ele era aluno da Escola Municipal União, na Boca do Rio, quando a recém-inaugurada biblioteca chamou escolas da região para participar de atividades culturais. Uma delas era a contação de histórias com a atriz e educadora Jeane Sánchez. “Eu comecei a frequentar a biblioteca logo no início, assim que abriu”, ele lembra.


Para um bairro populoso e historicamente carente de equipamentos culturais, a biblioteca funcionou como um centro onde livros, arte e convivência se encontravam.

“O bairro da Boca do Rio é extremamente popular e não tinha, ou se tinha, não tinha tanta expressão de centro cultural que abarcasse a necessidade do bairro”, diz.

A oralidade foi o que mais o marcou. “A literatura estava presente não só nos textos, mas também através da oralidade”, afirma. Mauro integrou o grupo infantojuvenil Isto & Aquilo, formado majoritariamente por crianças e adolescentes do bairro. Ensaios, figurinos, estudos de movimentos literários e apresentações em teatros, galerias e no Pelourinho faziam parte da rotina. “Para uma criança, era uma aventura”, conta. O grupo também integrava o bloco carnavalesco Boca de Brasa, que leva poesia às ruas no circuito do Pelourinho.


Na memória dele, alguns episódios parecem até irreais. Uma roda de poesia diante da Casa de Jorge Amado, por exemplo, fez o barulho do Pelourinho cessar por alguns minutos.

“Todo mundo parou para escutar.” Em outra ocasião, durante o cortejo do 14 de março, um policial abandonou a postura rígida para recitar um poema. “A potência da palavra encantatória é algo muito forte.”

O impacto da biblioteca atravessou a infância e modelou seu futuro. Hoje artista plástico formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, Mauro reconhece o início de sua formação ali. “A minha primeira formação artística foi através da biblioteca”, diz. A experiência também ampliou sua visão de mundo, fundamental para sua trajetória escolar. “Ter acesso a livros, a movimentos literários, a museus e ao teatro me deu uma bagagem cultural que eu não teria.”


O contraste entre a curiosidade das crianças e o acesso desigual à leitura no país aparece com nitidez no cotidiano da instituição. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, 53% dos brasileiros não leram nenhum livro nos três meses anteriores à pesquisa. Para Mauro, a biblioteca atua justamente nesse ponto de fuga. “É incrível ver crianças ficarem 30 minutos sem celular. Elas entram nesse universo da literatura e das artes, e isso é algo latente.”


Ao virar monitor, sentiu-se responsável por retribuir o que havia recebido. “Você sente a necessidade de doar parte do seu tempo”, afirma. Estar ao lado de outras crianças que chegavam pela primeira vez era como revisitar sua própria jornada. “Faz lembrar aquele meu primeiro encontro com a biblioteca.”


Para ele, a Betty Coelho preenche uma lacuna deixada pelo Estado. “Ela cumpre um papel que deveria estar sendo ocupado pelo poder público.” Entre poesia, performance e comunidade, Mauro segue carregando o que aprendeu ali: a certeza de que a arte pode ser uma porta aberta — sobretudo onde costuma faltar.

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